sábado, 22 de setembro de 2012

Uma tarde inesquecível

Ele estava ali, o que quer que fosse, Amanda podia senti-lo. Pode chamar de pré-cognição ou intuição feminina, mas apesar do barulho da chuva forte, que ela nem percebia mais, e da escuridão noturna, ela sabia. Tecnicamente isso era ainda pior, pois simplesmente saber disso a impedia de fazer qualquer coisa além de ficar encolhida com os olhos fechados. Bom, enquanto ela reúne coragem para tentar sair de seu esconderijo, eu aproveito para contar o que houve antes disso.

As ruas largas e lamacentas da zona portuária estavam desertas. Todos estavam em suas casas, se escondendo do sol escaldante e do cheiro que sobe do rio por conta do calor. A mãe de Amanda estava preparando o jantar junto com sua irmã mais velha enquanto o pai estava trabalhando no escritório, terminando um relatório qualquer. Naquela tarde Amanda tinha combinado de ir até a casa do namorado para terminar uma pesquisa pra escola. Eram cerca de dezessete horas quando ela abandonou os exaustivos cálculos arcanos para as aulas do dia seguinte e saiu de casa.


Enquanto seguia pela mesma vizinhança de sempre, Amanda estava com a cabeça nas nuvens. Nada além daqueles pensamentos aleatórios do modo "zombie" que nos vem à cabeça quando já sabemos o caminho de cor e salteado. Bom, pelo menos até ela perceber os tipos desagradáveis e intimidadores que a olhavam de modo obsceno do outro lado da rua. Ela ficou com medo de algum deles resolver ir além de simplesmente olhar e fez menção de correr. Felizmente nesse momento Alberto (o namorado) finalmente apareceu na frente dela, sumindo com o medo dela.


A partir de então, as quatro horas seguintes passaram como se fossem meros quinze minutos, entre beijos e sorrisos. O trabalho ficou meio pronto, mas isso beira o irrelevante, a falta de empenho em se concentrar para produzir algo excepcional valera a pena. Ela sentia-se leve, livre, como não se sentia há muito tempo. Bom, ela também estava um tanto constrangida... mas são detalhes que só competem a ela. A  tarde com ele havia sido maravilhosa, apesar de ele ter de sair correndo para ajudar o pai no banco. Mas tudo bem, a casa dela não era muito longe.



Ela olhava as estrelas enquanto voltava para casa, entrando novamente no modo "zombie", sem conseguir pensar em nada além de como seria a próxima tarde que os dois poderiam aproveitar juntos. A noite estava apenas no início, então havia aquela combinação bonita do pôr-do-sol com o manto escuro da noite. Uma brisa fresca acariciava seus cabelos enquanto ela caminhava pela grama. Ela sorria um sorriso bobo e alegre, mas sincero. Sorria, pois as palavras do seu namorado... bom, você sabe como são os apaixonados.
A dois quarteirões de casa ela se deu conta que o sol havia se posto por completo, e percebeu que a noite não é o momento para sonhar tranquilamente. Não em Aurora. Era um momento de tensão, até mesmo de certo suspense, nunca se sabe o que pode aparecer, mesmo depois de uma vida inteira de prática, nada podia prepara-la para o que ela estava prestes a ver.

Tinha acabado de escurecer, então os postes ainda não estavam acesos. Apenas a luz da lua permitia Amanda ver o caminho de casa. Tinha começado a chover e seus pés deslizavam na lama. Seus pais iriam falar por horas sobre como uma moça decente não deveriam chegar em casa depois de anoitecer. Bom, nenhum dia é perfeito, certo? As ruas estavam vazias e as casas escuras, pois muitas das pessoas que moravam ali acordavam antes do amanhecer e, portanto, já estavam se preparando para dormir. 


Amanda não era do tipo medrosa, na verdade, assustá-la era uma grande proeza que seu namorado tentava realizar havia meses. Mas no meio do intenso barulho da chuva, um assobio longo e penetrante fez um calafrio correr por sua espinha. Olhando para trás, Amanda viu os mesmos caras que a olhavam mais cedo, caminhando em sua direção com sorrisos amarelados e nada convidativos. Ela tentou não se intimidar, mas quando um deles sacou uma faca e disse "vai ser por bem ou por mal?", ficou difícil manter a pose de destemida. Ela recuou para a rua e fez menção de correr, quando o maior deles a agarrou pelo braço e a jogou no chão. O mundo dela então desmoronou. Ela simplesmente não conseguia pensar em nada, nem mexer um único músculo, quando algo estranho aconteceu. 


Um grito agudo e agonizante brotou de debaixo do toldo onde Amanda estivera antes de seguir para a rua. Seguido de um som como ossos se partindo e uma possa de sangue. Um par de olhos grandes e amarelos se abriu e, num piscar de olhos, o segundo atacante fora puxado trevas adentro. A única coisa que Amanda conseguira fazer foi se esconder atrás uma carroça velha que estava na calçada. Ao ouvir mais ossos se partindo, seguido de um grunhido ameaçador que interrompera o grito do segundo homem, Amanda se encolheu e tapou os ouvidos até não escutar mais absolutamente nada.

Pânico, histeria e pavor correram por sua mente. Ela trocaria todo o tempo que passou com o namorado até  hoje para não estar ali. Ela tentou se acalmar e respirar fundo e, ao ouvir o terceiro homem perecer, percebeu que a única coisa que, talvez, impediria que ela tivesse o mesmo destino, seria correr. Ela sentiu uma respiração quente passar por seus cabelos molhados e , quando um trovão rugiu noite adentro, ela se levantou e correu como se nada mais existisse. Ainda com os olhos fechados, ela percorreu o que pareceu dezenas de quilômetros. Quando se deu conta de que nada acontecera, ela tomou coragem e abriu os olhos. Nada. Absolutamente nada. Sem olhar para trás, ela andou rapidamente até sua casa, que estava a menos de trinta metros. Ela podia até mesmo ver a irmã bordando no segundo andar.

Amanda já estava com lágrimas nos olhos quando um segundo trovão lhe assustou e ela acabou olhando para trás. Seu coração parou, mas não havia nada. Ao voltar o olhar para sua casa, um rosto pálido manchado de vermelho a encarou com um par de olhos amarelos e, sorrindo com uma boca enorme, seu namorado estendera-lhe a mão. Amanda tentou soltar um grito que se recusou a sair de sua boca enquanto caia no chão, vislumbrando o terror que se apoderava dela. De repente tudo se apagou e a única coisa que Amanda ousava notar era que estava correndo, tendo completa convicção da futilidade de sua atitude...