sábado, 26 de outubro de 2013

Chloe - A fuga

A neve caía lentamente ao fim da tarde daquele dia. Ou talvez fossem cinzas de um incêndio distante. Lembro-me que em outra época estaríamos todos comemorando o Natal (ou o ano novo, não sei), porém, tudo q resta dessa data são umas poucas luzes que ainda piscam em alguns pontos da cidade aqui e acolá.
Chloe olhou para o alto, assustada por uma revoada de pássaros que passou voando a poucos metros de nós. Com sorte esse seria o nosso último dia aqui. Greg e Thomas estavam pilhando algumas casas abandonadas atrás de suprimentos para a viagem. Tínhamos de chegar à um abrigo logo, antes que a noite caísse, porém, queríamos cobrir o máximo de terreno possível naquele dia.
Do alto da escada de incêndio eu conseguia ver um barco atracado no porto, grande o bastante pro grupo todo, pequeno o bastante para nós seis tomarmos. Mas isso era para amanhã. A noite caía e as primeiras aberrações já se punham nas ruas, entre nós e o barco. Melhor poupar energia e munição.
Arísia apareceu de trás de uma caminhonete que estava ali tombada.
- Cadê o Arthur? – questionou Chloe.
- Ele está terminando de checar uma casa no fim da rua. Parece que tem um gerador no porão e um bocado de água ainda.
- Você largou ele sozinho lá? – indaguei.
- Não. O Greg e o Thomas foram para lá, só vim chamar vocês dois.
- Já vamos. Só vou terminar de checar aquela loja. – respondeu Chloe – Quero sair naquele barco o quanto antes e pra isso é melhor pilhar o máximo de suprimentos que pudermos. David, você pode ficar para me dar cobertura?
- Claro. – respondi.
- Suprimentos... sei. – Disse Arísia em tom de brincadeira. – Chloe Victoria, é melhor voltar com essa mochila cheia e você, senhor David, sem nenhuma marca. Gastem essa energia amanhã para pegarmos aquele barco e sairmos daqui. É nesta rua mesmo, número 157.
Chloe deu um sorriso e uma piscada de cumplicidade à garota, antes de partirmos rumo a uma farmácia que tinha uma moto atravessada na vidraça.
Apesar disso, não há nada entre nós dois, nunca houve. A questão é que possuo uma dívida eterna para com Chloe e ela aproveita isso para se passar por minha namorada ou coisa do tipo, evitando que outros sobreviventes que encontramos tentem algo com ela.
Mais neve começava a cair.
A farmácia já estava limpa, todas as prateleiras vazias com teias de aranha e poeira se acumulando em todos os cantos. Fui na frente, para ver se o local estava de fato vazio. Chloe vinha logo atrás de mim queimando um pouco de trama e oxigênio para iluminar o caminho.
Nada havia ali, a não ser por algumas caixas de fio dental, revistas velhas e desbotadas e um gato que quase me fez atirar nele ao saltar de trás da bancada.
- Certo. O que você queria vindo aqui? De verdade.
- Queria só ficar mais um pouco aqui fora, antes de ter que entrar e encarar o Greg de novo.
Chloe e Greg se odiavam, porém, ambos eram indispensáveis ao grupo então, pouco podia ser feito para melhorar sua interação. Ele era um mecânico ou coisa do tipo, o cara que fazia as máquinas funcionarem e um ótimo atirador, porém era um xenófobo incorrigível e Chloe era uma arcanista. Das boas. Suas tatuagens permanentes nos pulsos corriam pelo braço e terminavam num detalhadíssimo sol nas costas, que servia como círculo de especialização dracônica. E poder de fogo tem sido muito útil em tempos assim.
- Com sorte a próxima cidade estará melhor que aqui.
- Talvez, mas sem uma torre para receber qualquer comunicação só podemos torcer. – a pior parte é que nós acabamos por destruí-la ao tentar nos comunicar com um celular que ainda funcionava.
Ela suspirou e ia dizer algo, quando foi interrompida por um forte estampido e um sonoro “Puta que pariu!”, vindo da direção em que Arísia tinha apontado a casa.
Corremos para lá, lutando contra o vento que começava a soprar. Fomos atingidos pelo cheiro de algo que queimava quando Thomas, Arísia e Arthur saíram correndo de uma casa, com mochilas e as sacolas de suprimento.
- O que foi que houve?
- O gerador explodiu! - respondeu Arthur – E esse barulho vai acabar atraindo aquelas coisas. O melhor a fazer é limpar um desses apartamentos e ficar lá.
- Cadê o Greg?
- Está recolhendo as últimas mochilas e vendo o que mais podemos pilhar dali.
Só pude me expressar de uma forma.
- Puta que pariu, viu. Tá. Chloe, você e o Arthur montam guarda aqui até resolvermos isso. Arísia, você e o Greg trazem as coisas pra portaria. Thomas, comigo. Temos de montar uma barricada pra eles não conseguirem entrar.
O vento estava soprando cada vez mais forte e com ele um leve névoa. Ótimo.
Um som, vindo de traz de uma grande pilha de lixo fez Arthur disparar um tiro.
Greg e Arísia vieram correndo com o que restava das nossas coisas, logo antes de um grito gultural ecoar de algum lugar na névoa. Eles tinham ouvido o tiro, e estavam vindo pra cá.
- Arthur, Chloe, pra cá, rápido! – disse em voz baixa.
Eles tentaram fazer silêncio, mas quando a porta estava se fechando, um estridente rangido chamou a atenção. Ouvi o som de algo correndo logo antes de trancar a porta. Batidas e gritos à porta atraíam mais e mais deles que se aglomeravam como um cardume de peixes. Arrastamos um armário e dois sofás para impedir que arrombassem a porta.
A pouca luz solar que ainda teimava em sumir no horizonte iluminava o corredor através das grandes janelas com grade do segundo andar. Com o expurgo, muitas casas estavam parcialmente destruídas, fazendo um vento forte e gelado correr por entre as portas entreabertas. As paredes pichadas funcionavam como uma espécie de diário das pessoas que viveram e morreram ali depois da catástrofe. Mensagens de medo, desespero, derrota. Pessoas lutaram e desistiram de viver ali. A maior prova disso era o corpo de um garoto que tinha se enforcado no lustre de um enorme salão que encontramos lacrado. Era o único lugar onde poderíamos nos proteger da noite fria que estava por vir. Duas portas laterais estavam bloqueadas parcialmente.
- Arthur, você e o Greg verificam essas portas. Não podemos descuidar. - proclamei. – Thomas e Chloe, me ajudem a pilhar os outros cômodos. Arísia, prepare aquela lareira, podemos precisar, mas não acenda ainda, quero me certificar de que podemos usa-la. Depois peça ao Arthur e ao Greg pra te ajudarem a bloquear as janelas. - Elas eram grandes demais, seríamos alvos fáceis se alguém quisesse atirar aqui.
Ao sairmos, nos deparamos com a luz de um incêndio do outro lado da rua.
- Espero que o Greg seja um mecânico melhor se precisarmos dele no barco. – exclamou Chloe.
- Pelo menos isso atraiu aquelas coisas pra longe da porta.
Quase nada restava de útil nas demais salas do segundo andar. Nenhuma comida ou água, só um bocado de munição, alguns corpos e arquivos vazios. Consegui alguns mapas da região e uma garrafa de álcool. No refeitório do andar de baixo o que tinha já estava podre ou pior e os banheiros estavam inundados.
- Arthur, pegue um bocado de água daqui.
- Do chão?
- Sim, podemos ferve-la e economizar a água pra viagem.
Ao voltar, bloqueamos o corredor com uma fágil barreira de móveis, deixando apenas o acesso ao terraço livre. Resolvemos fazer uma pequena fogueira numa das salas laterais para nos aquecermos, como só havia uma pequena janela ali, a bloqueamos com uma cortina e nem luz nem fumaça ficava visível do lado de fora.
- Vou verificar o terraço – disse Thomas.
- Certo, Chloe, vá com ele. Toma, leva esses binóculos.
A sala já estava quente e o que não faltava naquele lugar era madeira.
- As janelas são blindadas - afirmou Arthur enquanto fervia a água – Tem um cofre lá atrás. Talvez o dono desse lugar era paranóico.
- Paranóico o suficiente para não por janelas no térreo. Isso sim é estranho. – respondi. – Aliás, que lugar é esse?
- Não faço ideia. Mas acho que era um escritório de alguma coisa.
- O que importa, é que amanhã, à essa hora, estaremos longe dessas pragas lá fora.
- Isso se o Thomas não afundar o barco.
Passou-me então a terrível ideia de talvez o barco estar com alguma avaria irreparável e ficarmos presos nesse pandemônio.
- Quanto temos de comida? – indaguei.
- Quem é o paranóico agora, hein?
- Quanto?
- Calma, cara, o suficiente pra uns três dias, mais ou menos. Mas relaxa, nessa época pescar por aqui é fácil. – respondeu Arísia.
Aproveitei, então pra estudar os mapas com Arthur, procurando rotas alternativas, pro caso de o plano de sair daqui de barco ir por água abaixo.
Ok, piada horrível.
Havia uma rodovia dois quilômetros ao sul. Possivelmente estaria bloqueada, entupida com centenas de carros das pessoas que tentaram sair da cidade assim que a infestação ocorreu.
Chloe e Arthur entraram cobertos de neve alguns minutos depois.
- Começou uma tempestade de neve.
- Assim do nada?
- “Winter is coming”, não é?
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A manhã seguinte estava muito nublada e ainda ventava muito. Esperamos até que o sol saísse de fato, por volta das nove horas e, quando todas as aberrações saíram do nosso escasso campo de visão, removemos a barreira da porta para a saída com o maior silêncio possível. Até que, ao empurrar a porta, ela emperrou. Uma ideia horrível passou pela minha cabeça. Por favor, que eu esteja errado.
- Arísia, corre lá em cima e olha a porta pro terraço.
Nos juntamos para empurrar a porta, mas ela não cedia. A maldita tempestade tinha acumulado neve ali. Não. Não faz sentido, quanto pode nevar numa única noite?
Com um sonoro arrastar ela se moveu um pouco, porém, algo lá fora respondeu e a empurrou de volta.
- Parem! Coloquem a barricada de volta! – disse Arísia do alto da escada. – Tem uma horda daqueles vermes subindo nessa direção!
Merda, merda, merda!
- E a porta do terraço?

- Está emperrada. Estamos presos aqui.

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